UM ENSAIO INTRODUTÓRIO AO PENSAMENTO POLÍTICO DE HERMAN DOOYEWEERD [1]

por David T. Koyzis

Tradução de Matheus Thiago C. Mendonça e
Revisão de Tradução de Lucas Oliveira Vianna[2]

Teoria política na tradição calvinista

É PROVAVELMENTE JUSTO dizer que, até recentemente, a teoria política na tradição Calvinista Reformada era amplamente desconhecida na corrente principal da academia. Onde era conhecida, seu caráter e impacto eram frequentemente sujeitos a má interpretação. Por exemplo, George H. Sabine (1880-1961) discute o calvinismo amplamente no contexto das controvérsias do século XVII sobre o direito de revolta popular contra a tirania.[3] Quentin Skinner adota uma abordagem semelhante [4], embora tanto ele quanto Sabine reconheçam que as próprias opiniões de Calvino sobre o assunto eram mais matizadas do que as de seus seguidores. Outros, do sociólogo Max Weber (1864-1920) ao economista R. H. Tawney (1880-1962), procuraram demonstrar uma conexão entre os ensinamentos de Calvino e seus seguidores e o desenvolvimento posterior do capitalismo industrial no Ocidente.[5] O filósofo canadense George Parkin Grant (1918-1988) segue essa tradição e vê a força motivadora “primordial” do calvinismo ligada ao liberalismo e sua consequente ênfase no domínio técnico do ambiente físico. Para Grant, o ímpeto calvinista é inexoravelmente ativista e tem pouca paciência para teoria e contemplação de qualquer tipo, seja política ou outra.[6]

Muitos observadores tendem a cometer um de dois erros em sua avaliação do calvinismo como tal. O primeiro é identificá-lo quase totalmente com a doutrina da predestinação, apesar do fato de que essa preocupação surgiu apenas no século após a Reforma. A segunda é assumir que, embora o calvinismo tenha significado político, ele se limita a ser uma espécie de precursor do liberalismo clássico e da moderna sociedade industrial. No entanto, os observadores mais astutos compreenderam que algo mais pode ser encontrado nesta tradição. O filósofo Nicholas Wolterstorff argumenta corretamente que o calvinismo é um tipo de cristianismo "formador do mundo", com implicações consideráveis não apenas para a vida pessoal de cristãos individuais, mas para as estruturas do mundo social mais amplo.[7] O estadista holandês, Abraham Kuyper, descreveu a versão calvinista do cristianismo como um “sistema de vida” com relevância, não apenas para a religião, mas também para as artes, as ciências e a política.[8] Até mesmo Tawney entendeu que o credo calvinista buscava "renovar a sociedade penetrando todos os departamentos da vida, tanto pública quanto privada, com a influência da religião".[9]  Isso deveria abranger tanto a política quanto o estudo acadêmico da política, sendo esse último o que é convencionalmente chamado de filosofia ou teoria política. 

Na verdade, a Reforma Calvinista gerou uma tradição distinta de teorização política que encontra seu ápice nos escritos de Herman Dooyeweerd (1894-1977), indiscutivelmente o filósofo cristão mais original do século XX. O próprio Calvino dedicou a última seção de suas famosas Institutas da Religião Cristã (livro IV, capítulo XX) ao governo civil e seu lugar no mundo de Deus. Johannes Althusius (c. 1557-1638), escrevendo no início do século XVII, construiu essa tradição de reflexão política e articulou uma teoria que pode ser justamente chamada de pluralista, em contraste com a corrente principal da tradição que se estende de Bodin através de Hobbes até Rousseau, para quem a soberania absoluta e indivisível é considerada um princípio político indispensável. Na verdade, um motivo principal por trás da publicação da tradução para o inglês de Frederick S. Carney de Politics de Althusius[10] foi demonstrar sua influência no desenvolvimento subsequente do federalismo, em compreensões posteriores de governo limitado e mesmo na crescente aceitação da participação popular no processo político. Althusius viveu nas regiões fronteiriças entre a Alemanha e a Holanda, e é até esta última onde devemos ir para rastrear o desenvolvimento da teoria política calvinista.

No início do século XIX, as ideias secularizantes geradas pela Revolução Francesa estavam tendo um grande impacto em toda a Europa, incluindo os Países Baixos. Nesse contexto, muitos cristãos estavam preocupados com o futuro do testemunho público de sua fé em um clima em que a secularização estava cada vez mais associada a uma compreensão monolítica da soberania do Estado, potencialmente ameaçando qualquer tentativa comunal de viver um modo de vida consistentemente cristão. O restabelecimento da Holanda como uma monarquia altamente centralizada após 1815 foi um desenvolvimento característico alinhado com esta tendência. O mesmo aconteceu com a efetiva nacionalização da Nederlandsch Hervormde Kerk (Igreja Reformada Holandesa) pelo Rei Willem I.

Da comunidade cristã reformada, surgiram dois líderes que ofereceriam alguma esperança para o futuro. Esses foram Guillaume Groen van Prinsterer (1801-1876) e Abraham Kuyper (1837-1920), que lideraram sucessivamente o que veio a ser chamado de movimento anti-revolucionário em seu país. Groen é mais conhecido por seu clássico Ongeloof en Revolutie (Incredulidade e Revolução, em tradução livre), escrito em 1847, pouco antes das revoluções europeias do ano seguinte.[11] Embora o pensamento político de Groen tenha muito da escola restauracionista romântica que surgiu após a derrota de Napoleão, ele começou a se mover em uma direção totalmente diferente em seus últimos anos, abrindo caminho para Kuyper assumir seu manto de liderança após sua morte. Kuyper era uma figura extraordinária que parecia excepcionalmente capaz de usar vários chapéus ao longo de sua longa carreira pública. Ele pode ser chamado justamente de pastor, teólogo, acadêmico, jornalista, educador e estadista. Embora tenha começado sua carreira no ministério paroquial, ele passou para muitas outras realizações. Ele se tornou editor do De Standaard e De Heraut, um diário e um semanário cristãos, respectivamente. Ele fundou o primeiro partido político holandês, o Partido Anti-Revolucionário em 1879, que também foi o primeiro partido Democrata Cristão do mundo. No ano seguinte, ele fundou a Universidade Livre, uma universidade cristã baseada nos princípios reformados. Ele foi eleito pela primeira vez para a Segunda Câmara do Parlamento holandês em 1874 e acabou servindo como primeiro-ministro de 1901 a 1905. O pensamento de Kuyper foi introduzido na América do Norte em 1898, quando ele proferiu as Palestras Stone (Stone Lectures) no Seminário de Princeton.[12]

Embora Kuyper não fosse um teórico político acadêmico, ele lançou as bases para uma abordagem altamente original da política que viria a ser rotulada como "Kuyperiana". Sua originalidade consistia desde o início no fato de que ele procurou articular uma visão consistentemente cristã do lugar da política no mundo de Deus, que seria livre das distorções de várias ideologias não cristãs. A este respeito, ele foi o herdeiro da abordagem de Groen em Incredulidade e Revolução. No entanto, Kuyper também entendeu que não se pode simplesmente fechar os portões em torno da comunidade de fé e fingir que os de fora não têm nada a oferecer. Por causa da graça comum de Deus (gemeene gratie), pode-se esperar que até mesmo os incrédulos ofereçam insights fragmentários em seu mundo. Kuyper não foi de forma alguma o primeiro cristão a compreender que a antítese aguda entre a fé e a descrença de forma alguma impede o reconhecimento da graça comum de Deus. O próprio Agostinho articulou a mesma verdade fundamental em De Civitate Dei. Mas Kuyper elaborou esse entendimento em um momento em que as igrejas da Europa e da América do Norte estavam se polarizando nas duas posições que H. Richard Niebuhr viria a descrever como "Cristo contra a cultura" e "Cristo da cultura", representando as tendências conservadoras e liberalizantes, respectivamente.[13]

A característica mais marcante do pensamento político de Kuyper é o princípio de soevereiniteit in eigen kring, geralmente referido em inglês como “sovereignty in its own sphere" [“soberania em sua própria esfera"], “sovereignty in its proper orbit” ["soberania em sua própria órbita"] ou simplesmente “sphere sovereignty” [“soberania das esferas”].[14] A soberania das esferas implica três coisas: (1) a soberania final pertence somente a Deus; (2) todas as soberanias terrenas são subordinadas e derivadas da soberania de Deus; e (3) não há soberania terrestre mediadora da qual outras derivam. As duas primeiras implicações servem para distinguir a teoria de Kuyper daquelas do individualismo liberal, em que o indivíduo é visto como soberano sobre a gama de comunidades que ele supostamente criou, e dos vários coletivismos, nos quais uma única comunidade abrangente é considerada soberana sobre outras comunidades e indivíduos abaixo. A terceira implicação serve para diferenciar a soberania das esferas do princípio da subsidiariedade, cujas raízes estão na tradição católica romana e cuja concepção de sociedade é marcadamente hierárquica. Por mais que a Reforma tenha procurado enfatizar o acesso direto e não mediado dos cristãos a Deus, o princípio de Kuyper também apontava para a autoridade direta e não mediada conferida por Deus às várias formas sociais que surgiram ao longo da história.

No entanto, dois problemas surgem da concepção de Kuyper de soberania das esferas, um dos quais é terminológico e o outro é de caráter mais ontológico. Em primeiro lugar, muitos observadores não estão totalmente satisfeitos com o uso da palavra "soberania" por Kuyper neste contexto. Para a maioria dos falantes de inglês, a soberania tem conotações claras de poder absoluto não verificado por nada ou ninguém fora dela. No Leviatã de Hobbes, por exemplo, o soberano está acima do pacto e não é limitado por seus termos. No Reino Unido, a soberania parlamentar significa que o Parlamento pode agir sem medo da intervenção de um tribunal autorizado a decidir sobre a constitucionalidade de um de seus atos. Soberania significa ter a última palavra, a palavra final, a autoridade final. Se assim for, então não é de forma alguma apropriado atribuir tal qualidade a meros seres humanos, cujo alcance e escopo de ação legítima são sempre limitados de alguma forma.[15]

Por isso teóricos mais recentes da tradição kuyperiana preferem falar de “autoridade diferenciada” ou mesmo de “responsabilidade diferenciada”, esta última talvez seja mais adequada para captar, além da autoridade das comunidades, a legítima liberdade da pessoa. dentro do contexto social mais amplo.[16] No entanto, quer se use soberania, autoridade ou responsabilidade, o pressuposto subjacente à abordagem kuyperiana é que a sociedade é multiforme e consiste em uma variedade de agentes responsáveis, tanto comunitários quanto individuais, cujo âmbito legítimo de atividade está enraizado imediatamente na soberania de Deus e que existem dentro de limites normativos impostos a eles pelo próprio Deus.

A segunda e mais séria dificuldade com a concepção de Kuyper de soberania das esferas é que, embora tenha uma base intuitiva sólida na experiência humana real, carece de uma certa sofisticação teórica. Por que, pode-se perguntar, o Estado constitui uma esfera distinta daquela, digamos, da igreja institucional? Por que os pais devem ter a responsabilidade de disciplinar seus próprios filhos? Por que eles não deveriam chamar um policial em vez disso? Por que, além disso, as empresas comerciais e os sindicatos não deveriam se tornar braços do Estado? Para ter certeza, Kuyper poderia responder que essas esferas normativamente permanecem distintas por causa das ordenanças de criação de Deus. Sua resposta estaria correta, mas por si só não nos levaria muito longe em nossas tentativas de compreender quais áreas da vida são esferas distintas e quais não são.

Por exemplo, se uma constituição federal concede jurisdição exclusiva sobre a educação aos governos estaduais ou provinciais, uma intervenção federal subsequente nesse campo é uma violação da soberania das esferas? Ou é apenas uma possível violação de um direito sob a norma positiva que exige a adjudicação por um tribunal constitucional? Uma comunidade étnica, cultural ou racial distinta é uma esfera no sentido de Kuyper? O casamento racial constitui uma violação da soberania das esferas? É claro que essas não são meras questões hipotéticas, porque foram discutidas na África do Sul durante os anos em que a política de apartheid estava sendo concebida e implementada. Se a Igreja e o Estado são esferas distintas, mas os governos federal e provincial e as comunidades étnicas ucranianas e polonesas não, devemos encontrar alguma maneira de explicar teoricamente nossa avaliação diferente desses casos.

A contribuição singular de Dooyeweerd

É aqui que Dooyeweerd entra em cena. Após a morte de Kuyper em 1920, coube a Dooyeweerd desenvolver ainda mais, com um maior grau de consistência teórica e sofisticação, os insights articulados apenas de forma seminal pelo antecessor.[17] Tendo crescido na comunidade cristã reformada na Holanda, Dooyeweerd estudou Direito na Universidade Livre, onde obteve seu doutorado em 1917. Em 1922, ele se tornou diretor do Kuyper Institute, em Haia. Então, de 1926 até sua aposentadoria em 1965, ele lecionou na Universidade Livre. Ele foi um estudioso prolífico que escreveu um grande número de publicações, culminando em 1935 com sua enorme obra de três volumes, De Wijsbegeerte der Wetsidee,[18] cujo título foi posteriormente associado ao movimento filosófico como um todo. O fato de ele escrever em grande parte na língua holandesa inicialmente atrasou a disseminação mais ampla de seu pensamento. Mas cerca de vinte anos mais tarde, sua obra de 1935 foi traduzida para o inglês, revisada e recebeu o título de A New Critique of Theoretical Thought.[19]

Com respeito à sua filosofia em geral, Dooyeweerd fez pelo menos duas contribuições únicas. Para começar, ele desenvolveu uma filosofia sistemática enraizada na convicção de que todo pensamento teórico tem fundamentos religiosos pré-teóricos e não-falseáveis.[20] Qualquer teoria que pretenda neutralidade religiosa, seja com base em uma faculdade racional universal dentro da pessoa ou com base na natureza objetiva dos chamados fatos no mundo circundante, deve ser vista pelo que é: epistemologicamente ingênua e inconsciente de seu próprio ponto de partida dogmático. Além disso, está enraizada em uma antropologia deficiente que eleva um aspecto da pessoa total e torna este o fator unificador do eu humano. No entanto, longe de ser uma faculdade aparentemente neutra, a razão pode ser entendida, de acordo com Dooyeweerd, apenas como o aspecto lógico de nossa experiência total. Nesse sentido, fé e razão não são as polaridades dialéticas que grande parte da tradição intelectual ocidental, de Averroës e Tomás de Aquino a Hobbes e Marx, chegou a pensar delas. Em vez disso, são dois aspectos de uma experiência humana muito mais rica e completa. Qualquer esforço para explicar teoricamente essa experiência depende necessariamente de um compromisso religioso final que está fora do empreendimento teórico e o precede. Até mesmo o cientista político comportamental ancora seu esforço em convicções religiosas a respeito da natureza da humanidade, do mundo em que habitamos e do lugar da política nesse mundo.

Em segundo lugar, a filosofia de Dooyeweerd evita todos os reducionismos. Embora esse antirreducionismo de princípios não seja de forma alguma peculiar a Dooyeweerd, sua própria contribuição consiste em (1) colocar esse insight dentro do entendimento mais amplo de que a criação de Deus não é um produto casual do acaso, mas um cosmos ordenado sujeito a leis e normas dadas por sua graça; e (2) seu esforço para explicitar aqueles aspectos da realidade que são irredutíveis, mas, se colocados em um contexto religioso apóstata, ainda assim emprestam uma certa plausibilidade ao projeto reducionista. Esses aspectos irredutíveis da realidade são chamados de modos, e o Dooyeweerd maduro postula quinze deles, listados aqui em ordem ascendente: aritmético (número), espacial, cinemático (movimento extenso), físico (energia), biótico (vida orgânica), psíquico ( sentimento, sensação), lógico, histórico (cultural, formativo), linguístico (simbólico), social, econômico, estético, jurídico (justiça, retribuição), ético (amor temporal, lealdade) e pístico (fé). A tendência persistente do pensamento teórico não cristão – ou talvez não teísta – é não apenas se apegar a um ou mais desses aspectos modais e ler o resto da criação por meio deles, mas assumir que fazer isso fornece a chave para a compreensão do mundo em sua totalidade.

A dificuldade em engajar um desses reducionismos no diálogo deve-se não à suposta irracionalidade do reducionista, mas ao fato de que seu empreendimento explica todas as evidências de uma forma que parece completa, mas, no entanto, está faltando algo crucial. O materialista convicto pode explicar facilmente fenômenos complexos como a raiva ou mesmo a afeição romântica apontando para o movimento dos impulsos elétricos no cérebro. O clássico filme de 1939 de Ernst Lubitsch, Ninotchka, joga com o materialismo de um estereotipado funcionário soviético com efeito humorístico. Aos gestos amorosos de Melvyn Douglas, o personagem russo de Greta Garbo responde: “Por que você deve trazer os valores errados? O amor é uma designação romântica para um processo biológico – ou, digamos, químico? – mais comum. Muitas bobagens são escritas sobre isso”. Na linguagem de Dooyeweerd, Ninotchka reduziu efetivamente um fenômeno complexo, no qual os aspectos psíquicos e éticos são especialmente proeminentes, às modalidades bióticas ou mesmo físicas.[21]

Nesse aspecto, o materialista é semelhante ao "louco" de G. K. Chesterton, que raciocina de uma forma que combina completude lógica com contração espiritual.[22] Se o louco argumentar que existe uma conspiração universal contra ele, e se você assinalar que todos a negam, ele provavelmente responderá que a negação é exatamente o que se pode esperar dos conspiradores. “A explicação dele cobre os fatos tanto quanto a sua”.[23] Como Chesterton conclui de forma memorável, o louco não é aquele que perdeu sua razão, mas aquele “que perdeu tudo exceto sua razão”.[24] Dooyeweerd colocaria o assunto de forma menos colorida, talvez, mas ele concordaria que o materialista, que vê todo o cosmos através das lentes estreitas de apenas um ou dois aspectos modais, perdeu a plenitude da vida humana, se não experimentalmente, pelo menos teoricamente.

Política e o Estado

Dooyeweerd também traz para sua teoria especificamente política esses insights fundamentais sobre a natureza do pensamento teórico. Se o reducionismo é um perigo na filosofia descrente em geral, é uma ameaça contínua à nossa capacidade de compreender o domínio político também. Na verdade, os teóricos políticos mais influentes do Ocidente moderno, de alguma forma, tentaram reduzir a política a outra coisa. O erro mais comum a esse respeito é transformar a política em economia.

Por exemplo, John Locke argumentou que praticamente a única razão de ser do governo civil é a proteção da propriedade privada. Libertários mais recentes, como F. A. von Hayek (1899-1992)[25]  e Milton Friedman (1912-2006),[26] seguem Locke ao assumir que a vida gira em torno do mercado e que o governo é, na melhor das hipóteses, um mal necessário encarregado da única tarefa de estabelecer regras procedimentais para estabilizar o seu funcionamento. Mesmo mais tarde, os liberais menos apaixonados pelo mercado econômico tendem a falar de um mercado de ideias, como se sua verdade ou falsidade dependesse de alguma forma das preferências e aversões de seus supostos consumidores.

Embora Karl Marx e seus seguidores dificilmente possam ser considerados discípulos de Locke, eles são, no entanto, seus herdeiros espirituais em grande parte. Para Marx, a política ainda é redutível à economia, embora em um sentido bastante diferente do que para Locke. Segundo o primeiro, praticamente toda a vida pode ser vista como uma série de conseqüências epifenomenais dos processos concretos de produção. Tudo o que parece ser de natureza não econômica é, portanto, qualificado com uma série de "simplesmente", "nada mais do que" e "nada mais" que supostamente nos aproximam de uma realidade material subjacente. Se Platão acreditava que o mundo sensível é menos real do que o mundo inteligível, Marx acredita, ao contrário, que as ideias são menos reais do que os arranjos econômicos que refletem e os conflitos de classe que delas decorrem. Assim, “O poder político, propriamente dito, é apenas o poder organizado de uma classe para oprimir outra”.[27] A expectativa é que, com o eventual fim da luta de classes, haverá pouca ou nenhuma necessidade do Estado como agora sabemos disso. Nas palavras de Marx e Engels, “o poder público perderá seu caráter político”. O próprio Engels é ainda mais explícito: o Estado irá “definhar”.

Em uma linha um pouco diferente, embora relacionada, o cientista político americano, David Easton (1917-2014), descreve a política como "a alocação autorizada de valores para uma sociedade inteira”.[28] Da mesma forma, Harold Lasswell (1902-1978) vê política como basicamente um processo distributivo que decide “quem obtém o quê, quando, como”.[29] Embora tais definições tenham certa plausibilidade, elas também são incapazes de distinguir adequadamente a política de outros campos da atividade humana, especialmente a economia. A ironia é que, embora tais relatos da política estejam próximos do centro da disciplina da ciência política, especialmente nos Estados Unidos, no mundo real da academia os cientistas políticos têm pouca dificuldade em saber intuitivamente o que se espera que estudem. Assim, o campo pode ser um pouco menos fragmentado do que a diversidade de definições parece sugerir.[30]

Mesmo teóricos políticos cristãos como Jacques Ellul (1912-1994) e George Parkin Grant não puderam evitar cair em seus próprios tipos de reducionismo. Embora cada um à sua maneira seja severamente crítico das principais tradições do liberalismo e do socialismo tão influentes nos últimos dois séculos, ambos reduzem efetivamente a política a algum fator apolítico. Para Ellul, o Estado e suas atividades estão envolvidos em um grande processo de expansão tecnológica que é efetivamente autônomo e, portanto, virtualmente imune ao controle e responsabilidade humanos.[31] Grant concorda amplamente com Ellul e, conectando a técnica com as forças econômicas do capitalismo, acredita que a integração econômica continental deve necessariamente levar ao amálgama político.[32]

Nos últimos anos, entretanto, testemunhamos uma espécie de oposição aos reducionismos mencionados acima, e é útil olhar para Dooyeweerd neste contexto mais amplo.

Podemos começar com Hannah Arendt (1906-1975), que se preocupa com a recuperação da política em um mundo obcecado pela imposição de projetos ideológicos obstinados. Acima de tudo, Arendt busca proteger a esfera pública como um espaço para a genuína liberdade humana, onde os cidadãos podem se reunir para agir e falar na presença de seus concidadãos. Qualquer movimento que negue o que ela denomina de condição humana de pluralidade corre o risco de acabar com a política genuína e substituí-la por algo apolítico.[33] Como Ellul e Grant, Arendt também teme o monismo implícito na técnica, mas ela não pode compartilhar o fatalismo de seus contemporâneos em acreditar no triunfo inevitável da técnica sobre a política.

A influência de Arendt pode ser detectada nos escritos de Sir Bernard Crick (1929-2008), particularmente em seu clássico In Defence of Politics.[34] Crick concorda com ela que a política “não é religião, ética, lei, ciência, história ou economia”,[35] mas é uma atividade distinta por si só operando de acordo com seus próprios imperativos. Enraizada no fato da diversidade humana – da existência de diferentes grupos, interesses, tradições e até verdades –, a política requer a disposição de todas as partes de se comprometer e aceitar menos do que eles preferem reivindicar do processo político. A política, em resumo, é a conciliação pacífica da diversidade, uma forma de resolver conflitos antes que eles se transformem em violência aberta. Crick se esforça para defender a política – por mais precária e desordenada que possa parecer para aqueles de tendência mais dogmática – de todos os que imporiam sua ideia única do bem comum a uma sociedade diversa.

De maneira semelhante, Sheldon S. Wolin (1922-2015) argumenta que a política é uma atividade centrada na competição de grupo em meio a condições de mudança e relativa escassez, cujas consequências afetam uma sociedade inteira.[36] A comunidade política é distinta de outras comunidades na medida em que se preocupa exclusivamente com o que é comum a toda a sociedade. Essas preocupações incluem “defesa nacional, ordem interna, dispensa de justiça e regulação econômica”.[37] No entanto, o mundo moderno tem se caracterizado pela sublimação da política e sua substituição por um ethos de organização. Esse ethos é caracterizado pelo esforço contínuo para descobrir as leis científicas às quais os fenômenos sociais podem estar sujeitos no interesse da verdade científica. Liberdade e cidadania são, portanto, depreciadas em favor da ordem, estrutura e regularidade.[38]

Poderíamos continuar esta breve pesquisa e olhar para Leo Strauss (1899-1973),[39] Eric Voegelin (1901-1985),[40] Jean Bethke Elshtain (1941-2013),[41] e muitos outros. Cada um, à sua maneira, tenta sublinhar a distinção da política em oposição àqueles que, mesmo inadvertidamente, a reduziriam a outra coisa de caráter apolítico. A maioria o faz falando de coisas como diversidade, pluralidade, liberdade pública, interesse comum e assim por diante. Mas mesmo esses fatores não são suficientes para delimitar a política como um empreendimento único, uma vez que podem ser encontrados em uma variedade de contextos, que vão desde empreendimentos comerciais até ambientes eclesiásticos.


É aqui que Dooyeweerd dá sua contribuição singular para a compreensão do que é e do que não é político. Na verdade, Dooyeweerd raramente usa o adjetivo "político" sem qualificar algum substantivo, como em, por exemplo, "comunidade política". Isso já nos dá uma forte indicação da abordagem de Dooyeweerd. Pois o que distingue a política propriamente dita do que muitos costumam chamar de política da igreja, política do trabalho e política da escola é que a primeira ocorre no contexto de uma comunidade específica conhecida como Estado. Na visão de Kuyper, o Estado é uma das esferas às quais uma parcela limitada e diferenciada da soberania humana é atribuída. Mas como podemos saber disso? O que diferencia o Estado da igreja, da empresa, do clube privado, da escola, do sindicato? Mais uma vez, somos capazes de intuir a diferença sem necessariamente sermos capazes de explicá-la teoricamente. No entanto, explicá-lo teoricamente ajuda a enriquecer nossa experiência intuitiva da realidade e, além disso, ajuda a confirmar ou descartar nossos palpites.

Dooyeweerd acredita que podemos explicar a singularidade do Estado analisando o que ele chama de "princípio estrutural". Este é o assunto do segundo ensaio deste volume. Seguindo Kuyper, a visão de Dooyeweerd da sociedade é aquela em que diferentes normas dadas por Deus operam em diferentes esferas de responsabilidade humana. Uma das principais normas que governam o processo de desenvolvimento histórico é a diferenciação social. Em sociedades indiferenciadas, várias funções relacionadas à sua existência contínua estão concentradas em algumas mãos. Em tais contextos, um chefe é ao mesmo tempo líder político, líder religioso, chefe de um clã ou comunidade de parentesco e assim por diante. Mas, à medida que a sociedade se desenvolve e se torna mais complexa, essas funções passam a ser desempenhadas por comunidades e instituições distintas definidas em algum sentido por essas funções. Assim, se outrora a família era simultaneamente uma unidade biológica, econômica e educacional, o processo de diferenciação acabou levando à formação de empresas econômicas e escolas distintas da unidade familiar. De maneira semelhante, embora em certa época as funções religiosas do culto e as funções políticas fossem frequentemente combinadas na mesma instituição, a diferenciação levou à separação dessas em instituições distintas de Igreja e Estado. Em uma sociedade madura e diferenciada, cada uma dessas instituições está sujeita a normas criativas específicas que regem suas atividades e está enraizada em uma relação entre dois dos aspectos modais, como explicaremos mais adiante.

Poder e justiça: transcendendo outra falsa polaridade

Mesmo entre aqueles teóricos que entendem que a política tem algo a ver com poder e justiça – ou com o que Dooyeweerd rotula as modalidades histórica e jurídica, respectivamente – há uma tendência persistente de jogar esses dois aspectos um contra o outro como se fossem, mais uma vez, polaridades. Assim como a corrente principal da tradição intelectual ocidental percebeu uma relação dialética entre fé e razão, também lutou para articular uma teoria de comunidade política e autoridade governamental no contexto de uma interação dialética entre poder e justiça.

Os realistas políticos, por exemplo, estão bastante dispostos a admitir que política tem a ver com poder. Na verdade, o realismo político é definido por sua redução da política à posse e à luta pelo poder. Hans Morgenthau, talvez o maior defensor dessa posição no século XX, enxerga muito facilmente que a política não deve ser confundida ou reduzida a outras atividades, incluindo a economia. No entanto, ele não consegue ver que a justiça é uma norma com alguma relevância para a política. A justiça está apropriadamente confinada ao reino da moralidade pessoal, e não se pode esperar de um Estado o que se pode esperar de uma pessoa individual. Portanto, a norma predominante para a ação política não é a justiça, mas a prudência que julga as decisões políticas de acordo com a norma de sucesso na consecução de objetivos. As consequências são muito importantes para o realista político.[42] Morgenthau segue a tradição de Agostinho, que também considerou necessário, por razões empíricas aparentemente sólidas, abandonar a justiça como uma característica definidora da Commonwealth.[43] No entanto, como Agostinho e seus sucessores realistas políticos, mesmo Morgenthau não está disposto a permitir que o poder permaneça sem ser guiado por alguma norma. A paz e a estabilidade são muito importantes para os realistas políticos, mas eles não conseguem ver que esses podem ser elementos significativos da própria justiça.

No entanto, nem todos os realistas políticos são entusiastas do poder e isso traz algo de uma qualidade paradoxal ao seu empreendimento. Por exemplo, Lord Acton afirma que o poder corrompe. Glenn Tinder observa ainda a "dúvida moral" do poder e admite que pode até ser "mal em essência".[44] De uma perspectiva reformacional, tais observações efetivamente ontologizam o mal ao atribuí-lo não à desobediência humana à vontade de Deus, mas a algo defeituoso na própria estrutura da criação.[45] Outros realistas, como Reinhold Niebuhr, estão dispostos a admitir que o poder em si não é mau, embora esteja continuamente em perigo de fomentar o mal se não for cercado por limitações efetivas enraizadas em um equilíbrio de poderes concorrentes.[46] De fato, o momento da verdade na posição realista política decorre de seu entendimento de que todo o poder humano deve estar contido dentro de tais limites.

Onde o realismo político erra, entretanto, é em sua suposição um tanto superficial de que todo poder é simplesmente egoísta e indiferenciado. Começamos com o interesse próprio. À primeira vista, pareceria seguro supor, de acordo com as linhas hobbesianas, que nossos semelhantes estão querendo nos pegar, em vez de esperar que ajam com benevolência para conosco. Na verdade, não seria sensato imaginar que ninguém está disposto a nos prejudicar e, por essa razão, muitas pessoas trancam as portas de maneira sensata à noite, por precaução. No entanto, nossa própria experiência de vida não justifica os piores temores de um Hobbes. A autoridade dos pais, por exemplo, não é exercida simplesmente no interesse próprio dos pais, mas no interesse dos filhos. Como até Platão entendeu, se o poder político fosse exercido apenas no interesse dos governantes, não seria necessário compensá-los pelo inconveniente de governar. Certamente, pais e governantes às vezes abusam de seus respectivos cargos, mas isso constitui uma perversão da norma. Resumindo, o poder pode ser abusado, mas esse abuso é a perversão de algo bom.

Nem é o poder simplesmente uma capacidade humana indiferenciada, como os realistas tendem a assumir. Por exemplo, embora Stephen Charles Mott entenda que o poder é um bem que pode ser abusado, ele só consegue discernir o que denomina poderes defensivos, exploradores e interventores.[47] Ele é menos capaz de responder pela autoridade em suas manifestações legítimas e pluriformes em toda a ampla gama de comunidades humanas.[48] A autoridade dos pais é muito mais do que um poder bruto e arbitrário, estando inextricavelmente ligada, como está, à criação dos filhos. A autoridade magisterial se distingue da autoridade política na medida em que a primeira está intrinsecamente relacionada à tarefa educativa do professor na escola. A autoridade política é obviamente diferente de outras formas de autoridade, como já podemos sentir em um nível intuitivo. No entanto, o realismo político é incapaz de dar sentido a essa diferença, por sua tendência a ver o poder como pouco mais do que uma capacidade indiferenciada de fazer as coisas acontecerem. Mott chega perto de compreender ao menos a natureza da autoridade política em seu relato de um poder interveniente agindo para restaurar algum tipo de equilíbrio perdido.[49] Até mesmo Morgenthau e Niebuhr entendem a linguagem do “equilíbrio de poderes”, que eles aplicam nas arenas domésticas e internacionais. Em outras palavras, mesmo que os realistas políticos evitem falar de justiça como subjetiva e moralista, sua necessidade de distinguir o Estado e o governo de outras comunidades os empurra inevitavelmente na direção de reconhecer algo como a justiça, que encontra seu caminho, por assim dizer, por meio da porta de trás.

Mais uma vez, a virtude singular da teoria política de Dooyeweerd é que ela pode explicar tanto o poder quanto a justiça como elementos indispensáveis e complementares na compreensão da natureza do Estado e da autoridade governante dentro do Estado. A este respeito, a abordagem de Dooyeweerd está mais bem enraizada na realidade empírica do que no realismo político. Como a fé e a razão, o poder e a justiça não são entidades em si mesmas coexistindo em tensão dialética. Em vez disso, eles são aspectos integrais – aspectos modais, na linguagem de Dooyeweerd – de uma realidade maior que deve ser reconhecida como complementar e não antitética entre si. Cada entidade, incluindo comunidades humanas, é caracterizada por uma relação peculiar entre dois aspectos modais inter-relacionados que Dooyeweerd rotula como funções fundantes e funções de liderança ou qualificadora. A função qualificadora é "o ponto de referência funcional final para toda a coerência estrutural interna do todo individual no agrupamento típico de seus aspectos”.[50] Em outras palavras, é aquela função que mais especificamente caracteriza a estrutura única de uma entidade e já nos aponta para sua tarefa interna única.

Dooyeweerd não define a função fundadora explicitamente, mas ilustra seu significado por meio de uma série de exemplos. L. Kalsbeek o descreve como a "inferior das duas modalidades que caracterizam certos tipos de todos estruturais”.[51] A função fundadora também pode ser definida como aquele ponto do aspecto modal em que uma entidade começa a assumir seu caráter único como um entidade particular –  ou talvez o ponto modal em que algo começa a ser diferenciado de outras entidades em um nível básico. Estados, universidades, orquestras, associações profissionais, sociedades fraternas e organizações de caridade, todos compartilham a mesma função histórica fundadora, mas têm diferentes funções qualificadoras.

Por outro lado, parlamentos, gabinetes, departamentos governamentais, tribunais e agências reguladoras compartilham as funções fundadoras e qualificadoras, o que indica que são manifestações da categoria mais ampla de Estado ou comunidade política. Entre essas entidades não pode haver relação de esferas de soberania como tal; em vez disso, as relações entre os chamados “ramos” do governo estão sujeitas a arranjos jurídicos positivos de natureza constitucional que diferem apropriadamente de um país para o outro. Assim, se um país é governado por uma separação de poderes ao estilo americano ou por uma forma mais britânica de governo responsável, não é uma questão de manter ou afastar-se da soberania da esfera, mas de considerações prudenciais enraizadas nas tradições únicas de uma comunidade política específica.[52]

O gráfico a seguir ilustra a análise modal de Dooyeweerd de várias entidades sociais[53]:


Como a análise estrutural de Dooyeweerd serve para melhorar a abordagem do, digamos, realismo político? Usando a linguagem de Dooyeweerd, os realistas políticos são capazes de explicar apenas a função fundadora do Estado, que está no modo histórico – esse modo tem a ver com técnica e poder cultural-formativo. Como o Estado, a igreja institucional, o partido político e o empreendimento empresarial são todos originados por meio do poder formativo humano, o realismo político é incapaz de distingui-los adequadamente porque falha em discernir suas funções de liderança típicas. Mais uma vez, em um nível experiencial pré-teórico, podemos facilmente identificar as diferenças entre essas instituições. Ironicamente, então, a teoria de Dooyeweerd explica essa realidade melhor do que as várias formas de realismo político. Também serve para concretizar teoricamente o princípio de Kuyper da soberania das esferas, respondendo às questões colocadas acima quanto ao que constitui e não constitui uma esfera soberana.

O que é o Estado, então? Dooyeweerd o define em seu nível fundamental como "uma organização monopolística interna do poder da espada sobre uma área cultural particular dentro das fronteiras territoriais”.[54] Mas esse poder da espada está sempre inextricavelmente ligado ao caráter do Estado como "uma relação jurídica pública unindo governo, povo e território em um todo político-jurídico”.[55] Isso implica ainda que a atividade do Estado deve ser sempre conduzida por sua tarefa central de fazer justiça, isto é, de harmonizar os diversos interesses dentro de um território, pesando suas respectivas reivindicações, e fazendo isso de forma a reconhecer suas limitações intrínsecas e seus lugares apropriados dentro do contexto social mais amplo. Em particular, o Estado é chamado a inter-relacionar justamente as várias esferas, garantindo por meio de seu poder coercitivo que elas não se excedam e invadam outras áreas legítimas de responsabilidade. Em suma, a justiça exige que o Estado defenda o princípio da soberania das esferas.

Pode-se perguntar, é claro, o que acontece quando o próprio Estado ultrapassa sua esfera legítima de responsabilidade e começa a invadir as esferas não governamentais de maneira injustificada. Dooyeweerd diz pouco sobre este assunto, exceto para expressar a esperança de que os detentores de cargos públicos possam "manter viva a consciência dos limites internos de sua competência".[56] Na falta disso, pode-se oferecer uma possível resposta a esta espinhosa pergunta com referência aos governos constitucionais existentes e aos mecanismos que eles empregam para prevenir esse perigo. Na verdade, as eleições populares realizadas regularmente ajudam a manter a responsabilidade do governo, assim como as leis arraigadas, estatutos ordinários e convenções não escritas que formam a constituição de um país no sentido pleno. Além disso, Yves R. Simon (1903-1961) acredita que a própria existência e vitalidade das instituições não estatais, muitas vezes referidas coletivamente como “sociedade civil” ou “estruturas mediadoras”, oferecem uma certa resistência ao absolutismo do Estado.[57] Outros teóricos, de Tomás de Aquino a Calvino e Althusius, acreditam que um remédio contra a tirania pode ser encontrado em magistrados inferiores autorizados a verificar o poder de um magistrado supremo. Isso aponta mais uma vez para um remédio constitucional, cuja natureza precisa precisaria ser trabalhada em cada sistema político. Talvez não seja muito especulativo supor que Dooyeweerd provavelmente concordaria com esta abordagem geral, que é consistente com sua visão mais ampla do Estado como defensor da justiça pública.

Com respeito à própria justiça, há, é claro, muita discordância entre os teóricos políticos quanto a se ela está enraizada em última instância na vontade humana ou em algo fora dela. A justiça é algo que leva em consideração os desejos dos membros de uma comunidade ou é um padrão objetivo cuja validade reside em algo superior ao da comunidade? A justiça encontra seu caminho nas reflexões de uma variedade de filósofos, desde o próprio Agostinho até John Rawls em nossos dias. Mas, previsivelmente, cada um articulou uma base diferente para isso, incluindo as formas de Platão, a virtude de Aristóteles, a lei natural de Tomás de Aquino, a vontade geral de Rousseau e a racionalidade pura e egoísta de Rawls.

Da perspectiva de Dooyeweerd, a justiça está enraizada em um padrão mais elevado, mas também está enraizada nas aspirações normais de uma comunidade de pessoas. Por um lado, a Escritura nos diz que o próprio Deus é um Deus de justiça e nos ordena a agirmos de acordo.[58] A justiça, então, não pode ser reduzida a meras preferências humanas. Não estamos sendo justos simplesmente porque obedecemos às leis da terra expressas pela vontade de um legislador. Contra gente como Hobbes, que afirma que justiça é tudo o que sai dos lábios do soberano, devemos reconhecer que as próprias leis positivas às vezes são injustas. A esse respeito, devemos afirmar que a justiça é um padrão objetivo ou, melhor, uma norma criadora que não pode ser reduzida à mera vontade humana.

Ao mesmo tempo, a justiça não pode ser desconectada da atividade humana, incluindo os desejos, aspirações e desejos normais das pessoas. A justiça requer agentes humanos tanto para colocá-la em prática quanto, igualmente importante, para articular as reivindicações que ela tenta julgar. Isso significa que não pode ser concebida como um ideal abstrato imposto do alto, mas, em vez disso, uma resposta real aos anseios, necessidades e objetivos humanos reais. É essa conexão com o mundo real que falta em muitas noções “objetivas” de justiça. Justiça não é uma ideia platônica que devemos nos esforçar para trazer do céu para a terra. Nem está enraizada em uma espécie de natureza estática – mesmo uma natureza humana – anterior aos seres humanos concretos. Entre os mandamentos de Deus está o de fazer justiça. Não somos instruídos a lutar para alcançar a justiça. Não devemos tentar trazê-la à existência, como se fosse uma espécie de entidade substancial que temos de fabricar de acordo com um projeto ainda indeterminado. Não é um objetivo que nos esforçamos para alcançar, assim como amar nossas filhas e filhos não é uma espécie de vaga aspiração para o futuro. A teoria política de Dooyeweerd nos ajuda a ver que a justiça, longe de ser uma meta para o futuro, é um aspecto intrínseco – na verdade, uma das características definidoras – da estrutura do Estado.


_____________

NOTAS

1.  Este ensaio foi adaptado do “Introductory Essay,” em Daniël F. M. Strauss, ed., Political Philosophy by Herman Dooyeweerd (Ancaster, Ontario and Lewiston, New York: The Dooyeweerd Centre and the Edwin Mellen Press, 2004), pp. 1-16, The Collected Works of Herman Dooyeweerd, series D, volume 1. O presente texto foi veiculado sob o título Introductory Essay to Herman Dooyeweerd's Political Thought, no blog Notes from a Byzantine-Rite Calvinist.

2.  Tradução realizada com expressa autorização do autor, sob a responsabilidade intelectual de Matheus Thiago Carvalho Mendonça e Lucas Oliveira Vianna, no âmbito do Núcleo de Estudos em Direito e Fé Cristã da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²).

3. George Sabine e Thomas L. Thorson, A History of Political Theory (Hinsdale, Illinois: The Dryden Press, 1973, 4th ed.), pp. 339 ff, 352 ff. 

4. Quentin Skinner, The Foundations of Modern Political Thought: Vol. 2: The Age of the Reformation (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), pp. 189 ff.

 5. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (New York: Charles Scribner’s Sons, 1958); e R. H. Tawney, Religion and the Rise of Capitalism (Harcourt, Brace & World, 1926). 

6. George Parkin Grant, Technology and Empire: Perspectives on North America (Toronto: Anansi Press, 1969).

7.  Nicholas Wolterstorff, Until Justice and Peace Embrace (Grand Rapids: Eerdmans, 1983).

8.  Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931), originalmente apresentado como as Stone Lectures, em 1898, no Princeton Theological Seminary.

9.  Tawney, p. 91.

10. The Politics of Johannes Althusius (Boston: Beacon Press, 1964).

11. Ver Harry Van Dyke, Groen van Prinsterer’s Lectures on Unbelief and Revolution (Jordan Station, Ontario: Wedge Publishing Foundation, 1989) para uma tradução resumida para o inglês deste trabalho com um ensaio interpretativo. O trabalho de Groen foi publicado separadamente como Unbelief and Revolution (Bellingham, Washington: Lexham Press, 2018).

12. Ver Peter S. Heslam, Creating a Christian Worldview: Abraham Kuyper’s Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1998). Para a melhor biografia de Kuyper em inglês, ver James D. Bratt, Abraham Kuyper: Modern Calvinist, Christian Democrat (Grand Rapids: Eerdmans, 2013).

13. H. Richard Niebuhr, Christ and Culture (New York: Harper & Brothers, 1951).

14. Kuyper, “The Antirevolutionary Program,” James W. Skillen and Rockne M. McCarthy, ed., Political Order and the Plural Structure of Society (Atlanta: Scholar’s Press, 1991), esp. pp. 257 ff.

15. O próprio Dooyeweerd acredita que a soberania pode e deve ser salva daqueles que atribuem conotações absolutistas a ela.

16. Para entender melhor o significado e as implicações da responsabilidade diferenciada, ver James W. Skillen, The Scattered Voice: Christians at Odds in the Public Square (Grand Rapids: Zondervan, 1990), e Recharging the American Experiment: Principled Pluralism for Genuine Civic Community (Grand Rapids: Baker Books, 1994); e Paul Marshall, “Politics Not Ethics: A Christian Perspective on the State,” em Servant or Tyrant: The Task and Limits of Government (Mississauga, Ontario: Christian Labour Association of Canada and Work Research Foundation, 1989), pp. 5-24.

17. Para relatos mais detalhados das atividades e influência de Dooyeweerd, ver a introdução de Bernard Zylstra para L. Kalsbeek, Contours of a Christian Philosophy: An introduction to Herman Dooyeweerd’s thought (Toronto: Wedge, 1975), pp. 14-33; e Albert M. Wolters, “The Intellectual Milieu of Herman Dooyeweerd,” em C. T. MacIntire, ed., The Legacy of Herman Dooyeweerd: Reflections on critical philosophy in the Christian Tradition (Lanham, Maryland: University Press of America, 1985). Ver também Marcel E. Verburg, Herman Dooyeweerd: The Life and Work of a Christian Philosopher (Jordan Station, Ontario: Paideia Press, 2015), que é mais um traçado do desenvolvimento de seu pensamento ao longo de sua vida do que uma biografia. Ver também Jonathan Chaplin, Herman Dooyeweerd: Christian Philosopher of State and Civil Society (Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2011), para uma excelente análise da teoria política de Dooyeweerd. A principal dificuldade com a abordagem de Chaplin é que ele está demasiado pronto para dispensar a função fundamental de Dooyeweerd na análise estrutural das estruturas de individualidade.

18. Dooyeweerd, De Wijsbegeerte der Wetsidee (Amsterdam: H. J. Paris, 1935-36).

19. Dooyeweerd, A New Critique of Theoretical Thought (Amsterdam: H. J. Paris; Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1953-58).

20. Ver Dooyeweerd, In the Twilight of Western Thought: Studies in the Pretended Autonomy of Philosophical Thought (Nutley, New Jersey: The Craig Press, 1960).

21. Localizado em <http://www.filmsite.org/nino.html>, modificado pela última vez em 21 de abril de 1998, citando o roteiro de Charles Brackett, Billy Wilder e Walter Reisch, baseado na história de Melchior Lengyel.

22. G. K. Chesterton, Orthodoxy (Wheaton, Illinois: Harold Shaw Publishers, 1994), esp. pp. 9 ff.

23. Chesterton, p. 15.

24. Ibid.

25. Ver F. A. von Hayek, The Road to Serfdom (Chicago: University of Chicago Press, 1944).

26. Ver Milton Friedman, Capitalism and Freedom (Chicago: University of Chicago Press, 1962); e, com Rose Friedman, Free to Choose (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1980).

27. Karl Marx and Friedrich Engels, The Manifesto of the Communist Party (1848).

28. David Easton, A Systems Analysis of Political Life (New York: Wiley, 1965).

29. Harold Lasswell, Politics: Who Gets What, When, How (New York: Meridian Books, 1958).

30. Para um excelente levantamento e análise da disciplina de ciência política, ver James W. Skillen, “Toward a Comprehensive Science of Politics,” em Jonathan Chaplin and Paul Marshall, ed., Political Theory and Christian Vision: Essays in Memory of Bernard Zylstra (Lanham, Maryland: University Press of America, 1994), pp. 57 ff.

31. Os escritos de Ellul são numerosos demais para listar por completo. Entre suas obras mais conhecidas estão The Technological Society (New York: Alfred Knopf, 1964) e The Political Illusion (New York: Alfred Knopf, 1967). Ver também The Technological System (New York: Seabury, 1980).

32. Veja o argumento de Grant em Lament for a Nation: The Defeat of Canadian Nationalism (Toronto: McClelland e Stewart, 1965), sobre o destino do Canadá em uma economia norte-americana dominada pelos Estados Unidos. Embora a ascensão do Nafta e da União Europeia possa parecer na superfície uma justificativa de seus temores, é revelador que, no exato momento em que ocorre a integração econômica continental, movimentos separatistas, como os de Québec, Escócia e Kosovo também estejam causando seus impacto nessas mesmas regiões.

33. Hannah Arendt, The Human Condition (Chicago: University of Chicago Press, 1958).

34. 4th edition (London: Weidenfeld & Nicolson, 1992), com primeira publicação em 1962.

35.  Crick, p. 15.

36.  Sheldon S. Wolin, Politics and Vision: Continuity and Innovation in Western Political Thought (Boston: Little, Brown and Company, 1960), pp. 10-11.

37. Wolin, pp. 2-3.

38. Wolin, pp. 352 ff.

39. Ver, por exemplo, Leo Strauss, What Is Political Philosophy? and Other Studies (Westport, Connecticut: Greenwood Press, 1959), e particularmente o ensaio do título.

40. Ver Eric Voegelin, The New Science of Politics (Chicago: University of Chicago Press, 1952), e Science, Politics and Gnosticism (Chicago: Regnery Gateway, 1968.

41. Ver especialmente Jean Bethke Elshtain, Democracy on Trial (New York: Basic Books, 1995).

42. Hans Morgenthau, Politics Among Nations (New York: Alfred A. Knopf, 1948).

43. Agostinho avaliou a definição de Cícero de res publica como uma comunidade unida por laços de justiça e achou-a insuficiente. Afinal, raciocinou ele, a velha república romana era certamente uma res publica, mas, ao negar a Deus o culto que lhe era devido, faltava justiça. Assim, se uma res publica conhecida carece de justiça, devemos excluir a justiça de qualquer definição empírica desse fenômeno (De Civitate Dei, XIX, 21). A falha no raciocínio de Agostinho vem de sua incapacidade de compreender o caráter jurídico modal da res publica e sua tendência concomitante, em vez de ver a justiça como uma entidade substancial que está presente in toto ou ausente in toto.

44. Glenn Tinder, Political Thinking: The Perennial Questions, 5th ed. (New York: HarperCollins, 1991), p. 95.

45. Para uma discussão lúcida e não técnica da distinção entre a estrutura da criação e a direção espiritual, veja Albert M. Wolters, Creation Regained: Biblical Basics for a Reformational Worldview (Grand Rapids: Eerdmans, 1985, 2nd ed., 2005).

46. Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, vol. II, Human Destiny (New York: Scribners, 1943), p. 22.

47. Ver Stephen Charles Mott, A Christian Perspective on Political Thought (Oxford: Oxford University Press, 1993), esp. pp. 13 ff.

48. A própria palavra “autoridade” ocorre em apenas duas páginas de seu livro, pp. 61 e 192, conforme revelado no índice. Há, de fato, uma contradição central em sua descrição da autoridade. Por um lado, ele admite que “autoridade, responsabilidade corporativa e tomada de decisão coletiva são essenciais para toda forma de vida humana” (p. 61), o que implica uma base criacional para autoridade. No entanto, por outro lado, ele argumenta que "autoridade significa que o poder é concedido voluntariamente a um ator pelos sujeitos para fins apoiados por seus valores" (Ibid.), O que implica que a autoridade talvez possa ser dispensada se a vontade dos sujeitos não é concordante. Certamente, o consentimento dos sujeitos é um componente necessário da autoridade, mas a própria autoridade não pode ser reduzida a tal consentimento. Ver, de minha autoria, We Answer to Another: Authority, Office, and the Image of God (Eugene, Oregon: Pickwick Publications, 2014), para um relato alternativo da autoridade e seu lugar na vida humana.

49. Para ser justo, embora Mott seja influenciado pela tradição niebuhriana de realismo político, ele é capaz de reconhecer as reivindicações de justiça e trata esse conceito repetidamente em seu livro (pp. 74 e seguintes), assim como Niebuhr em seus próprios escritos. Veja Niebuhr, especialmente pp. 244 ff.

50. Dooyeweerd, New Critique, III, p. 58.

51. L. Kalsbeek, Contours of a Christian philosophy: An introduction to Herman Dooyeweerd’s thought (Toronto: Wedge, 1975), p. 348.

52. Dito isso, entretanto, arranjos jurídico-constitucionais positivos não são simplesmente arbitrários. Embora não se possa falar de soberania da esfera no sentido adequado entre os vários ramos do governo, existem diferenças entre, digamos, uma legislatura e um tribunal que estão ancoradas em nossa experiência e parecem estar enraizadas em algo criativo. Um cientista político comparativo não tem dificuldade em distinguir entre uma legislatura e um tribunal quando os encontra em vários sistemas políticos. Cada um tem uma tarefa central que parece estar relacionada à sua natureza interna. Uma legislatura faz a lei, enquanto um tribunal julga casos decorrentes da lei. Se um tribunal parece estar interferindo na tarefa legislativa, muitos cidadãos provavelmente concluirão que algo está errado no sistema como um todo. (Ver, por exemplo, o simpósio polêmico, “The End of Democracy? The Judicial Usurpation of Politics,” First Things, no. 67, novembro de 1996, pp. 18 ff, sobre o alegado abuso de autoridade judicial pelos tribunais americanos.) Da mesma forma, quando uma junta militar toma o poder de um governo civil, há um sentimento geral, mesmo em uma constituição não democrática ou parcialmente democrática, de que a situação é anômala e que o retorno à normalidade implica um retorno ao governo civil. Dooyeweerd tenta tratar a questão das diferenças institucionais internas ao governo em Encyclopedia of the Science of Law, o primeiro volume da qual, a Introdução, foi publicado em inglês (Grand Rapids: Paideia Press / Reformational Publishing Project, 2012), com volumes posteriores a serem publicados.

53. Dooyeweerd mudou de idéia em sua análise modal do partido político. Na primeira edição (Wijsbegeerte der Wetsidee, ou WdW) ele viu o partido político como pisticamente (fé) qualificado, enquanto na segunda edição (New Critique, ou NC) ele o viu como eticamente qualificado.

54. NC, III, p. 414.

55. NC, III, p. 437.

56. Dooyeweerd, "The relation of the individual and community," Essays in Legal, Social, and Political Philosophy, translated by D. F. M. Strauss, edited by Alan M. Cameron (Lewiston, New York: The Edwin Mellen Press, 1996), p. 98.

57. Ver Simon, Philosophy of Democratic Government (Chicago: University of Chicago Press, 1951), pp. 136 ff.

58. Ver Jan Dengerink, The Idea of Justice in Christian Perspective (Toronto: Wedge, 1978), para um levantamento das diferentes noções de justiça desenvolvidas desde a época de Platão.


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